quarta-feira, 29 de julho de 2009

Morreste-me

(...) Pai. Deixaste-te ficar em tudo. Sobrepostos na mágoa indiferente deste
mundo que finge continuar, os teus movimentos, o eclipse dos teus gestos. E tudo
isto é agora pouco para te conter. Agora, és o rio e as margens e a nascente; és o
dia, e a tarde dentro do dia, e o sol dentro da tarde; és o mundo todo por seres a
sua pele. Pai. Nunca envelheceste, e eu queria ver-te velho, velhinho aqui no
nosso quintal, a regar as árvores, a regar as flores. Sinto tanta falta das tuas
palavras. Orienta-te, rapaz. Sim. Eu oriento-me, pai. E fico. Estou. O entardecer,
em vagas de luz, espraia-se na terra que te acolheu e conserva. Chora chove brilho
alvura sobre mim. E oiço o eco da tua voz, da tua voz que nunca mais poderei
ouvir. A tua voz calada para sempre. E, como se adormecesses, vejo-te fechar as
pálpebras sobre os olhos que nunca mais abrirás. Os teus olhos fechados para
sempre. E, de uma vez, deixas de respirar. Para sempre. Para nunca mais. Pai.
Tudo o que te sobreviveu me agride. Pai. Nunca esquecerei.



in Morreste-me
de José Luís Peixoto

quinta-feira, 23 de julho de 2009


Não me perguntes…Não sei!
Caí no abismo do meu próprio véu
E não sei mais como transparecer…
O transparente incolor de mim,
Não sei mais eu reconhecer…
Dos fantasmas soberbos no teatro já não sou
E reciclo o pouco que de mim sobrou!!!
Abismos de pedras silenciosas
Que em surdina falam sem cessar a voz…
Os muros são soldados
E eu de mim inimigo.
Combate esquecido, a sós…
Digo comandante de mim “sentido!”,
De mim faço peregrino.
Caminho na falsa luz da minha alma
Que se apaga, oh! Desatino…
Se em mim vês trilho, não percorras
O meu cinza-ferro e enferrujado!
E já não sei! Não sei de mim,
Não me encontro porque me falto…
Estou algures, além do vago e inato asfalto!


A inteligência da criança observa amando e não com indiferença - isso é o que faz ver o invisível.

(Maria Montessori, pedagoga italiana)

quarta-feira, 22 de julho de 2009

Bom dia amor!

Bom dia amor! Estás aí?
Bate com força no meu peito…
Doce pulsar do meu coração
Desde aquela tarde de Verão.

Verão de aroma tão singelo,
Tocavam os anjos violoncelo.
E o sol feliz se fazia sentir;
Desde então passei a sorrir.

Cheiros de um tão leve sabor
Deixaram-me com sede de amor.
E tu, com tua boca doce, altiva,
Mataste a minha sede com saliva.
Ao meu amor
desde aquela tarde de Verão (há doze anos atrás)

sexta-feira, 17 de julho de 2009

Queria ser...


Queria ser asa branca para voar
E confundir-me no céu cristalino.
Queria chegar aos anjos a cantar
Ao som agudo de um violino.

Queria ser asa branca, de pena nevada
E agarrar-me às ondas no enrolar.
Queria voltar p’ra terra ainda molhada
E no cimo das rochas as penas secar.


quinta-feira, 9 de julho de 2009

...o poema não se escreve




(...)o poema não se escreve com letras, escreve-se


com grãos de areia e beijos, pétalas e momentos, gritos e


incertezas, a letra p não é a primeira letra da palavra poema,


a palavra poema existe para não ser escrita como eu existo


para não ser escrito, para não ser entendido, nem sequer por


mim próprio, ainda que o meu sentido esteja em todos os lugares


onde sou, o poema sou eu, as minhas mãos nos teus cabelos,


o poema é o meu rosto, que não vejo, e que existe porque me


olhas, o poema é o teu rosto, eu,eu não sei escrever a


palavra poema, eu, eu só sei escrever o seu sentido.




in A criança em ruínas


de José Luís Peixoto